quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

Qualquer coisa sobre Villeneuve, comunicação, eu mesmo nisso tudo


Esta é a minha ùltima semana a Villeneuve. Na verdade, os ultimos dois dias.

Acho que esta serà minha ultima postagem enquanto estiver a Villeneuve. Faltando pouco mais de um dia prà ir embora, devo conseguir estabelecer uma reflexão qualquer sobre esse primeiro mês por aqui.

Eu anjdei pensandomuito por esses tempos sobre comunicação, e os motivos são mais ou menos obvios. A forma como você se exprime, na sua lingua, é um produto final que torna essa expressão fundamental prà tua identificação, enquanto uma pessoa e enquanto membro de determinados grupos. Aqui, isso fez muita falta.

Aprender a pedir àgua, comida, a atender o telefone e comprar um sapato é apenas o inicio da aprendizagem de qualquer lingua, e tem de ser, mesmo. Uma lingua nasce, pensando no seu surgimento enquanto produto de um grupo humano, com esse tipo de conceito, acredito, e a gente a aprende, quando é criança (ou quando tem de voltar a ser, numa situação como a em que eu estive), primeiramente prà exprimir esse tipo de coisa. Isso tem relação direta, claro, com qualquer coisa de primàrio, também, pro ser humano. Nesse primeiro momento, portanto, em que nosso vocabulario e nossa capacidade de articulação se resume praticamente a esse tipo de situação, é um pouco como se você também se resumisse, nesse periodo, a qualquer coisa dotada somente dessas necessidades.

Depois de um tempo, essa situação não é tão legal assim. O sentimento de não pertencer ao lugar é forte e real porque você não pode se exprimir no conjunto de conceitos daquelas pessoas. os conceitos podem até ser muito parecidos com os da sua lingua natal, mas você não sabe como traduzi-los e a incomunicabilidade é sentida de forma muito forte, no inicio. Não digo que senti falta de uma boa conversa todo o tempo porque tive, nesse periodo, outros brasileiros por perto, mas o tempo em que conversàvamos em português não era muito grande, justamente prà acelerar o processo de aprendizagem, e não era certamente suficiente prà suprir a falta.

Eu jà disse que no nosso jeito de falar esão presentes muitos identificadores, pessoais, de grupo, de contexto social. Isso pode ser sentido de muitas formas. Jà tive algumas conversas sobre isso no Brasil. Eh mais ou menos como a sensação de alguém que começa a ler Nietzsche, e no inicio não entende muita coisa do que està lendo. Depois, começa a entender melhor, à medida em que vai lendo de novo, lendo com atenção, vai assim compreendendo cada vez melhor o que o autor quer passar. Começa, quando conversa com outros sobre o que leu, a utilizar os conceitos do autor, desenvolvidos explicitamente ou não na obra. Nesse ponto, você se acostumou, jà, com o arcabouço conceitual do cara. Ai, tudo fica muito mais fàcil, mas não é porque o livro se tornou mais fàcil. Eh a forma de falar, a forma de passar as ideias que estão mais claras. Você construiu, jà, uma ponte de comunicabilidade com o autor. Sacou, tanto quanto possivel, o mundo do cara, a forma como ele vê e interpreta as coisas.

Isso acontece muito, também, quando você conhece uma pessoa nova, uma daquelas pessoas que passou muito tempo, jà, pensando nas coisas, que jà teve contato com muitas pessoas e obras que também eram humanamente ricas, e absorveu, interpretou aquilo, construiu sobre tudo aquilo. Que, portanto tem um arcabouço conceitual rico, bonito. Quando eu digo nova, é num sentido especifico, quero ser claro quanto a isso. Jà conheci pessoas novas, ricas e muito bonitas por dentro (quando disser "bonitas", o "por dentro" vai ficar subentendido daqui por diante. Tem mais do que praticidade de expressão nisso), mas que não eram muito novas prà mim. Sempre hà algo, e isso é sempre legal, mas muitas vezes o grosso da coisa é jà parecido, e não é dificil estabelecer logo aquelas conversas enormes, trocando figurinhas, filme preferido, livro, cor, mùsica que toca fundo. Acontece, porém, de às vezes você sentir aquela sencação de absoluto estranhamento com relação a qualquer coisa. Não é desprezo, porque você nem sabe o que é aquilo prà poder desprezar. Eh simplesmente algo absolutamente sem sentido prà você. Jà senti isso em filmes, jà senti isso com livros, jà senti isso com pessoas. O sentimento é muito parecido.

Isso me faz muder um pouco de assunto, porque eu pensoque tem mais de uma forma de lidar com o aparecimento do novo. Muitas vezes, e infelizmente, a gente não consegue perceber o novo que tem là. Eh que o novo é realmente muito novo. Você simplesmente não tem conceitos prà nomear, classificar, absorver aquilo. Então, você não absorve. Eh aquele mesmo principio segundo o qual, de tudo o que você vê, você vê, na verdade, realmente muito pouco. Grande parte de tudo o que você vê, das imagens que você percebe, você cria com a cabeça a partir do que você jà tem dentro dela, a imagem que realmente existe è muito simplificada prà poderser absorvida. Eh muito mais fàcil absorver assim. Você olha uma àrvore e, um segundo depois, o que fica dela é "ela é verde-escura, as folhas são médias, ela é alta". Mas, tente se lembrar se o galho curva prà direita ou prà esquerda, as cores exatas de uma folha, que normalmente têm o branco de uma fonte de luz refletida numa borda, o escuro do sombreado em outra borda, e isso é diferente prà cada uma porque cada uma està numa posição diferente... Ela é, no màximo, 80% verde. Mas "verde" é a aproximação com a qual você se contenta.

Do alto de nossa vontade de jà ter conhecido muito do mundo, e do conforto que é a gente continuar com tudo bem organizado na cabeça, a gente muitas vezes acha que não vai existir ninguém muito diferente de tudo o que você jà viu. E esse sentimento nos impede, muitas vezes, de enxergar o diferente nas pessoas. Com o seu conjunto de conceitos, você descreve cada coisa que enxerga e conhece, e com isso reduz muita coisa que é um absurdo de bonita a qualquer repeteco de coisas em sua cabeça, e acha que aquilo é mesmo so mais um mais-do-mesmo, e perde a chance de conhecer qualquer coisa nova, nova.

Hà, porém, vezes em que as coisas não acontecem bem assim. De uma em cada centena, milhar de coisas muito fantàsticas que passam pela sua vida, em uma, por uma sorte imensa, você repara. Você reconhece, num momento de disposição e generosidade com o mundo, alguém que tem algo de absolutamente novo. Idéias nas quais você nunca havia pensado antes. Não é que eu nunca houvesse trombado com elas, mas nunca realmente as tinha absorvido. E, de repente, depois de 1 mês ouvindo aquilo, depois de toda a vida a esbarrar com elas, de repente, um dia, tudo aquilo parece fazer grande sentido, e cada palavra dita pela pessoa se encaixa num todo coerente. Não é como era antes, quando a paixão sincera com que a pessoa defendia a idéia não correspondia ao que você julgava que a idéia valia, ou quando algumas palavras não pareciam estar no lugar certo no discurso mas você julgava que a pessoa havia mesmo as utilizado muito mal. Não, agora tudo é um todo coerente, e tudo faz sentido. Eh novo, diferente, coerente, e não é nada em que você havia pensado antes. E estava ali o tempo todo, e era igualmente diferente o tempo todo.

Esse sentimento, o sentimento de reconhecimento de qualquer coisa absolutamente nova, sempre foi o sentimento mais extraordinàrio de que eu posso me lembrar. Esse, e o sentimento de ter criado ou feito algo realmente bom, são os melhores sentimentos que eu jà senti. Sempre que eu os sinto novamente, é como se tivesse nascido de novo. Me recriado junto com o que eu criei, Me redescoberto com o que eu descobri, nascido de novo junto com o que realmente nasceu de novo e de bonito em mim, novos conceitos, novas formas de abordar o mundo e de pensà-lo.

Eu penso muito na juventude como a capacidade de absorver o novo. Não é adaptação, o que é muito diferente, mas é a criação de novos conceitos, de formas novas de observar e interpretar tudo. E na velhice como estagnação dessa capacidade, ou como a estagnação no confortàvel que é um mundo jà todo conhecido, explorado e entendido. Passar muito tempo sem descobrir nada absolutamente novo é prà mim muito ruim, principalmente quando esse periodo é comparado com os periodos em que você curte algo que nunca havia sentido antes.

Nos ùltimos 3 anos de Brasil, em São Carlos (mais os agregados naturais do nùcleo sancarlense, claro, dos quais eu hoje tambèm faço parte, na qualidade de primeiro correspondente internacional da Rep Baço Reloaded, seguido pela Karina) eu estive integrado num grupo que passou um tempo estabelecendo um grande conjunto conceitual conjuntamente, grupo que eu abandonei no auge, até então, dessa construção. Hà muitas expressões que eu adoraria ter ouvido nesse mês, usado em muitas discussões interminàveis, ouvido muitas piadas de um humor com o qual eu jà sei perfeitamente lidar, entendê-lo, aprecià-lo. Expressões que são de propriedade do grupo, que nos permite identificà-lo e nos sentirmos confortàveis dentro dele, e também expressões que são propriedade individual, pertencem à idiossincrasia (numa escolha de palavras metalinguistica, sendo esse um parênteses metalinguistico e também uma homenagem ao amigo mais idiossincràtico - se a escolha do termo não é correta a mensagem certamente està corretamente estabelecida - que eu jà tive a honra e o prazer de conhecer) de cada um, a imagem de cada um que é facilmente identificada, apreciada, amada. Eu carrego na minha linguagem os identificadores do meu grupo, e carrego também meus proprios identificadores, que não pude utilizar aqui nesse primeiro mês. O quanto é dificil não utilizà-los é algo que ficou bem claro prà mim, nesse periodo.

No fim desse mês, ontem e hoje foram os dois primeiros dias em que eu assisti a reproduções de situações reais à televisão daqui - filmes, séries de TV francesas - e pude compreender razoavelmente quase todas as palavras dos discursos, considerando a velocidade e os coloquialismos das conversas cotidianas, e passei grande parte da noite conversando sobre assuntos diversos, conseguindo fazer as pessoas rirem das minhas historias, entenderem meus sentimentos e impressões de maneira até então inédita. Estou conseguindo, finalmente, começar a estabelecer o meu arcabouço conceitual de maneira mais ou menos completa em francês, me exprimir e me traduzir razoavelmente pros francofonicos. Ontem, houve a festa de confraternização entre as familias de acolhimento, os politécnicos e a escola de linguas de Villeneuve, aqui na escola. E eu fiz um pequeno discurso como o porta-voz dos alunos - simples e pequeno, é evidente que sim, mas correto e proprio prà situação -, de improviso, agradecendo os pais, a escola, deixando uma mensagem de amizade, e fazendo uma piadinha ao fim! Foi um absurdo de legal.

Faz 3 dias que a amendoeira da frente de casa floresceu. A primavera começa a chegar devagar, em Villeneuve. Paul disse que ela demorou, esse ano, a amendoeira costuma florescer no meio de Fevereiro. Mas o inverno parece que està finalmente indo embora. Hoje, eu fui ao campo com a Marise, na casa de uma prima dela, e ela me mostrou um grupo de pàssaros que estão migrandode volta ao Norte, vindo da Africa. Ela me disse que, quando isso é visto, é porque não vai mais fazer muito frio. E eu estou indo prà Paris. Prà falar a verdade, morar com uma familia foi uma experiência ùnica e muito legal, mas cansa muito, voltar a ter de dar satisfações, voltar a ter de dormir cedo, passar fins-de-semana em programas cotidianos. Està acabando na hora certa, quando eu começo a sentir falta de novo da vida de estudante.

Em resumo, estou voltando a morar sozinho; começo a conseguir me exprimir em francês da forma como um dia eu quero me exprimir, plenamente, com minhas idiossincrasias. A fase definitiva da estadia na França parece que vai começar. Devagar, claro, tudo demora um pouco. A felicidade, a primavera, tudo chega devagar, e néao é uma chegada mesmo continua. Mas estou muito otimista quanto à possibilidade de estabelecer uma boa vida por aqui, nestes anos.

Uma ùltima noticia, quanto a estabelecer minhas idiossincrasias: Hoje, descobri, lendo um gibi do Tintin, que a expressão "De qualquer forma" existe aqui... "De toute façon"! Eh oficialmente a minha primeira marca em francês.

De novas noticias, chego Sexta-feira, ao meio-dia daqui, a Paris. Sexta-feira à X, vai ser um dia de boa burocracia francesa. Dai, um final-de-semana prà se situar, e então o inicio das aulas por là na Segunda.

Vou ficar por aqui. Ah! A foto do texto é minha, mesmo. Eu tirei na feira livre daqui, que aliàs é muito legal. Eh tradicional e muito antiga, como muita coisa desse lugar. Acontece na praça central da cidade, todos os Sàbados.

4 comentários:

Unknown disse...

É sempre difícil comentar um texto com essa qualidade. Vou dizer apenas que gostei muito e que é sempre melhor, infinitamente superior, quando você se coloca no que escreve. Muitas vezes sinto falta da sua primeira pessoa! (Há uma certa ambigüidade aí, não exatamente intencional, mas sem dúvida verossimilhante.)

E como gostaria de ter ouvido todos esses comentários pessoalmente, de ter trocado impressões a respeito do tema que permeia todo o texto, tema fascinante que, tenho certeza, suscitaria discussões proveitosas entre nós - você, nossos amigos daqui e eu. Tenho pensado um tanto sobre a comunicabilidade, sobretudo depois de assistir àquele filme novo do Alejandro González Iñárritu, Babel. Se puder ver, não deixe passar a oportunidade.

Aprecio muito a união do seu poder de percepção e análise com a sua densidade emocional característica. Não vou, porém, continuar elogiando muito. ;) Não hoje.

Ontem fomos a uma festa, a cachorrada da física. Estávamos lá o Pês, o Trofs, o Carinhoso (com new look 100% aprovado e comemorado!), o Boné, o Caíça, o Dani, o Gui e eu, fora outros agregados ou colegas que encontramos lá. Já meio acostumado às badalações da noite alternativa paulistana, foi uma redescoberta me divertir com o pessoal de São Carlos - e como gostei disso. Eu tenho essa peculiaridade de me divertir demais quando todos estão achando a situação trivial por completo, então não posso garantir que todos tenha gostado tanto quanto eu. :P Isso dito, tenho certeza de que você teria gostado. Foi bonito (sim, eis a palavra) porque tinha aquele nosso clima, aquela atmosfera especial e, concomitantemente, estávamos numa festa pública, cercados por gente conhecida.

Bem, fico por aqui porque o blog é seu e eu não tenho de escrever textos quilométricos.

Amo você. Um beijo enorme,

Drico

Daniel Abramowicz disse...

Sem dúvida foi o texto do blog que mais gostei de ler até agora, também o que mais me fez sentir sua falta.

Enxergar o outro com os olhos do outro... acho que você está apaixonado ;) é mais fácil de acontecer entre pessoas com olhos parecidos - coerência todos têm, de toute façon.

vou seguir um pouco o modelo do comentário da Drico:
Ontem tivemos uma festa na Rep. Six - estávamos lá todos da república nova com exceção do Pes que foi para Rio Preto encontrar a família. Além desses estavam o Cléber, o Alê apareceu rapidamente com a Mari, a Cinthia dormiu lá, aquele garoto que tocou violão no jantar de natal do dia 14 de Dezembro que não lembro o nome, o Renato, o Bira (não sei se você conhece, é um garoto que levou o Pes para uma festa no sábado passado, ele deve ter te contado), o Adriano... achei até mais interessante que a cachorrada da Física. Como já foi dito por outra pessoa em algum comentário, você tem sido bastante lembrado por nós (o Renato e o garoto do violão nos explicaram o que significa "with lasers"... rsrsrs o pessoal anda armado por aqui!)

Quanto à falta que sentimos, imagino que tenha sido pior para você do que para nós por enquanto, não porque você sinta mais saudade, acredito que esta seja da mesma ordem de grandeza para nós e para você. Mas nesses dias você esteve longe das pessoas com quem tem mais intimidade. Voltando às aulas tive de conviver com muitas pessoas com quem não sinto tanta intimidade quanto o grupo ao qual você se referiu no post. O tempo todo era como se minha personalidade estivesse impedida de aflorar. Certos comentários sofriam auto-censura. Não deixei de ser eu mesmo, mas fui obrigado a me tornar um eu mesmo que não me dá aquele prazer inerente à existência. Entretanto no final-de-semana encontrei boa parte da nossa turma, e essa é uma possibilidade que você não teve nesse inverno.
Por outro lado, agora você vai para a X dotado de capacidade de comunicação, vai reencontrar a Karina, conhecer pessoas novas e com certeza muito interessantes e não tenho dúvidas de que a primavera dessa nova fase de sua vida trará muitos prazeres que você não esquecerá de compartilhar conosco (hehe).

já escrevi demais nesse comentário, paro por aqui. Espero que o fato de tantas pessoas dizerem o que vou dizer agora não banalize, vulgarize ou diminua a importância do que representa para todos os que se sentem assim - te amo.

Um beijo,
Daniel

Unknown disse...

Escrevi e apaguei ontem algo por ai
pq queira escrever melhor

mas vai isto, por hora

És Grande

És inteiro

A conexão que fazes das aventuras espitirituais com as concretas
traduzidas na reflexão dos diversos niveis de comunicabilidade/incomunicabilidade
é uma das facetas do que já te disse porque te admiro tanto:
a específica resposta ao mundo frente às situaçoes colocadas.
Há muito a conversar, pouco a monologar sobre elas,
por definição.

saberás construir novos mundos
saberás fazer novos os mundos
porque estás a fazê-lo
a cada momomento em que és no mundo

te escrevo mais por mail

manda um beijo pra Karina
bençãos hannicas pro Eis

meu mais carinhoso abraço

sinta-o

j.

Jasmira disse...

Raul, vc é lindo...
que saudades!
eu sempre fiquei meio paralisada com as coisas que vc diz e senti isso agora... vc me faz lembrar do tempo de infância, em que me parece que eu percebia as coisas de forma mais completa apesar de não saber expressá-las... o que ainda tenho grande dificuldade mesmo em minha própria língua, e quando surgem pessoas assim como vc eu simplesmente não sei o que dizer. vc diz, vc é meu porta-voz... obrigada por existir, meu lindo...
um grande abraço!